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“Pensar as cidades é pensar a qualidade de vida da maioria dos habitantes do planeta”, explica especialista em planejamento urbano

Vamos continuar falando sobre planejamento urbano? Para avançar – e aprofundar – o assunto, a convidada do Bate-Bola dessa vez é Ariadne Daher, arquiteta-urbanista sócia do Jaime Lerner Arquitetos Associados (JLAA), escritório criado pelo renomado urbanista brasileiro, de mesmo nome, que trabalha na criação de iniciativas para melhoria da qualidade de vida nos ambientes urbanos.

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Ariadne é a especialista contratada pela Comunitas para liderar, junto com a Prefeitura de Santos, um projeto de planejamento urbano para a cidade. O desafio do trabalho de elaboração de Diretrizes de Macroestruturação Urbana é construir, em conjunto com a população santista e seus representantes, intervenções urbanas estratégicas, que sejam capazes de nortear e alavancar o desenvolvimento local e regional em sintonia com premissas de sustentabilidade, ancoradas nas potencialidades do município e diminuindo seus desequilíbrios.

Confira o Bate-Bola:

 

Comunitas – Quando falamos em “cidade”, o que vêm à sua cabeça? Qual a função estratégica das cidades e por quê devemos pensar em um planejamento urbano para elas?

Ariadne Daher – Primeiramente, pessoas. Cidades são o habitat que os seres humanos criaram para si ao longo de milênios, transformando sua relação com o meio natural, avançando processos econômico e expandindo suas redes sociais. Creio que a primeira função estratégica da cidade é ser o espaço do encontro e da troca. É palco privilegiado para o exercício da solidariedade e da tolerância. Pensar as cidades é pensar a qualidade de vida da maioria dos habitantes do planeta.

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Comunitas – Quais fatores devem ser considerados para a construção de um bom planejamento? E quais os pontos de atenção?

Ariadne – Os fatores a serem considerados para a construção de um bom planejamento são tantos e tão variados quanto os temas de ação humana; é um assunto transdisciplinar e multiescalar. Entretanto, poderia destacar alguns temas prioritários. A cidade é uma estrutura integrada de vida, trabalho, mobilidade. Assim, seu planejamento precisa abordar as questões de como a cidade se relaciona com a sua base ambiental (sustentabilidade); de que seus habitantes vão viver (base econômica); onde e como as pessoas vão morar, trabalhar, atender suas necessidades do dia-a-a-dia (organização do uso e da ocupação do solo); como vão se deslocar pelos espaços (transporte e sistema viário); que infraestruturas dão suporte ao bom funcionamento desse organismo (saneamento, energia, comunicação); quais são os espaços compartilhados para o encontro e a expressão das pessoas (espaços públicos e equipamentos culturais). Mas o planejamento da cidade não olha só pelo “corpo físico” da cidade, mas também por sua “alma”. A alma da cidade é a sua identidade, alimentada pelo o sentimento de pertencimento e autoestima de seus cidadãos. Cidade é para pessoas. Finalmente, o bom planejamento deve conceber/revelar uma estrutura de crescimento que não apenas corra para consertar situações postas, mas que integre e conduza seu desenho, e a consequente ação de atores públicos e privados.

Responda: Planejamento urbano para quê?

 

 

Comunitas – Como uma cidade começa a transformação? Qual o primeiro passo de uma cidade que resolveu construir um planejamento de logo prazo?

Ariadne – A cidade começa a transformação ao construir uma visão de futuro, um sonho compartilhado capaz de mobilizar os esforços de toda a sociedade, ao longo do tempo, para sua realização. Assim, construir essa visão de futuro é o primeiro passo. Há também que se compreender que as pessoas precisam “ver para crer”, e que o tempo político requer respostas no curto prazo. Assim, pontuar o planejamento de longo prazo com ações imediatas que concorrem para objetivos mais longevos é uma alternativa. Uma ferramenta possível são as “Acupunturas Urbanas”, intervenções precisas, pontuais, rápidas, que promove, o efeito demonstração. Nas palavras do Jaime, “fazer acontecer” é absolutamente fundamental. Uma vez que se sabe o que se deseja, cabe ao Município capitanear a construção de “equações de corresponsabilidade”, agregando a contribuição não só do governo, mas da sociedade civil e dos segmentos econômicos.

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Comunitas – Após construído, como implementá-lo com eficácia e eficiência?

Ariadne – Tão importante quanto o planejamento é o “fazejamento”, como concretizar as ações propostas. Planos raramente tem força de lei, portanto é necessário guarnecer sua implementação dos devidos institutos legais. Lembrar que planejamento não é um produto, mas sim um processo, portanto precisa de constante monitoramento e de canais de comunicação.

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Comunitas – Governos vem e vão… Como enfrentar o desafio da sustentabilidade do planejamento com as trocas de mandatos no governo?

Ariadne – Fazendo da construção da visão de futuro uma construção da sociedade, não de um governo, e ter ferramentas que zelem por sua implementação. Curitiba, por exemplo, criou, junto com o seu plano diretor da década de 1960, um instituto de pesquisa e planejamento urbano (Ippuc), na tentativa de minimizar interferências de trocas de gestão nas linhas mestras de seu planejamento. Mas a maior salvaguarda é a população que se manifesta por meio do voto. Uma vez que esse sonho compartilhado deita raízes, que é apropriado, os eleitores tendem a ser implacáveis com aqueles que tentam desvirtuá-lo.

 

 

Comunitas – A população é a mais interessada nos resultados de um bom planejamento. Quais maneiras de envolver a sociedade nessa construção e implementação? E quais serão os benefícios para ela em longo prazo?

Ariadne – Novamente o fio condutor é a visão de futuro; na sua construção a população deve participar. A legislação brasileira já prevê uma série de mecanismos que conduzem a esse envolvimento; fazer bom uso dessas possibilidades já é de grande valia. Mas creio que a melhor maneira de envolver as pessoas com a cidade é cultivando – particularmente por meio de espaços públicos de qualidade – o sentimento de pertencimento, a identidade e a autoestima, que levam as pessoas a terem vínculos afetivos com a vida urbana na dimensão do coletivo, e assim, desejar participar de seu planejamento.

 

 

Comunitas – Mas as cidades são habitadas por pessoas com diversos perfis. Como conciliar diferentes interesses?

Ariadne – O caminho é o diálogo permanente. Construir canais para esse diálogo é fundamental. Mas há que se compreender também que não é possível agradar a todos em tudo o tempo todo. A democracia é também a arte de administrar divergências. A busca da unanimidade, nesse sentido, é o triunfo da paralisia.

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Comunitas – As grandes cidades estão passando por um “boom” na variedade de deslocamento, como patinetes e bicicletas compartilhadas, que desafia o planejamento urbano. Qual a saída para as cidades superarem esse desafio?

Ariadne – A solução da mobilidade só pode ser encontrada dentro de uma visão abrangente que compreende que é a concepção da cidade (e não na abertura de vias ou na construção de viadutos) o locus das respostas estruturantes. A cidade não existe para servir de espaço para a circulação de automóveis. Ainda que a solução da mobilidade urbana deva passar pelo equacionamento e a utilização inteligente de todas as modalidades existentes, é o transporte público que teve ser priorizado para atender os deslocamentos de rotina. Patinetes e bicicletas compartilhadas são elementos interessantíssimos, principalmente para incrementar a capilaridade dessa trama de modalidades de uso coletivo. Mas é um elemento novo, com o qual ainda estamos aprendendo a trabalhar e a estabelecer limites. Creio que nesse sentido, o tempo e as novas tecnologias jogarão a favor de minimizar conflitos, dentro da premissa de que os usuários compreendam que o sistema viário de uma cidade é um espaço limitado a ser compartilhado por todos.

 

 

Comunitas – Além de arquiteta, você é cidadã: como é a cidade que você deseja para o futuro?

Ariadne – Não consigo pensar em uma única cidade que deseje. Penso em Calvino, e suas magníficas descrições em Cidades Invisíveis. As cidades são construções históricas, e materializam em seus espaços a síntese do viver de uma sociedade ao longo do tempo. O que menos quero imaginar é que essa singularidade se perca. Desejo que cada cidade encontre o caminho para nutrir aquilo o que tem de melhor, em um processo em que todos que ali nasceram ou escolheram viver possam fazê-lo em segurança, com dignidade e alegria.

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Comunitas – Você, junto ao escritório Jaime Lerner, é uma das responsáveis pelo desenvolvimento do Santos 500 – planejamento urbano da cidade paulista liderado pela Prefeitura Municipal e apoiado pela Comunitas. Como está seu desenvolvimento? Qual o futuro do projeto? Quais os resultados esperados? E qual a Santos que a população pode esperar com a implementação das ações sugeridas?

Ariadne – O projeto segue firme sob a liderança da Prefeitura. Um olhar externo tem um pouco mais de facilidade de se alçar por sobre as demandas cotidianas que os atores públicos precisam responder. Ainda, pode despertar a atenção da sociedade local para potenciais adormecidos, bem como estimular um debate mais abrangente. Esse processo é parte da construção, por parte do município, de uma visão compartilhada e de um espaço para começar a delinear as equações de corresponsabilidade que virão a materializá-la.

O trabalho da Jaime Lerner em Santos concentra-se no desenvolvimento de diretrizes e projetos estratégicos em três linhas principais: a área central do município na porção insular, as áreas de expansão no continente e moradia popular. Nós já apresentamos um conjunto de ideias para os dois primeiros temas, e o terceiro está em elaboração, com previsão de ser colocado para discussão com a Prefeitura em outubro. Conforme as ideias vão sendo apresentadas, o Município tem paulatinamente agregado interlocutores na sua discussão, a fim de aperfeiçoar o que vem sendo feito, e construir as interfaces que poderão levar essas ideias a serem realizadas, tal como o detalhamento de projetos elencados como prioritários. Esse é um processo que requer coordenação e amadurecimento.

Para o polígono do centro, por exemplo, o que vem sendo proposto tem por objetivo valorizar e articular espaços da cidade que estão um pouco esmaecidos, como, por exemplo, a região do antigo mercado, a moldura edificada de seu entorno e a bacia das catraias; a região do porto Valongo; e o Monte Serrat. Espaços todos que podem ser âncoras da renovação da área central do município, articulando soluções de moradia para diferentes necessidades, novos espaços públicos e equipamentos comunitários, atividades culturais e artísticas, enfim, um conjunto de iniciativas que deem visibilidade para toda a vitalidade latente que aí existe, e que ajudem a repovoar esse território precioso de Santos. Uma Santos menos díspar e fragmentada, que usufrua de forma plena o amplo patrimônio cultural, ambiental e econômico que tem, é o sonho que a JLAA tem colocado em discussão para que possa ser, na medida do interesse local, sonhado junto.

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