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Impactos da judicialização da saúde | por Januario Montone

por Januario Montone

A judicialização do sistema de saúde é uma realidade cada vez mais presente para todos os gestores do setor público e privado. A população não apenas tem maiores informações sobre seus direitos como canais mais acessíveis para reivindica-los, como a Defensoria Pública em todos os níveis e os Juizados de Pequenas Causas. Quando aportam no Judiciário os dados disponíveis indicam que a imensa maioria dos pedidos é aceito gerando demandas aos gestores públicos e privados.

Porém, tanto no SUS como no setor de Saúde Suplementar as demandas podem ser classificadas em dois grandes grupos: as que se referem a medicamentos, insumos, terapias e procedimentos médico-hospitalares cobertos pelos sistemas na forma da sua regulamentação e os não cobertos, ou seja, os que estão incluídos ou não na cobertura obrigatória para cada setor. Os mecanismos são diferentes, mas tanto o SUS como o setor de Saúde Suplementar tem definições muito específicas e tecnicamente definidas de tudo que deve ser obrigatoriamente atendido e elas são revistas e aperfeiçoadas periodicamente.

Nas demandas referentes à cobertura obrigatória de cada setor a ação do Judiciário garante o direito dos usuários do SUS e dos planos de saúde ao exigir que sejam atendidos. Porém, as demandas judiciais fora da cobertura obrigatória também vem sendo, em sua maioria, aceitas pelo Judiciário e seus impactos são cada vez mais avassaladores.

Como se trata de uma relação de consumo, protegida pelo Código de Defesa do Consumidor, a gestão de risco da judicialização está na agenda do setor privado há mais tempo e possui uma dinâmica própria, com etapas prévias à judicialização propriamente dita. São intermediações feitas através dos Procons e, em especial, pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Essas instâncias estabelecem negociações prévias, no caso da ANS, com as Notificações de Intermediação Preliminar – NIP, com claro poder punitivo para exigir o cumprimento das coberturas obrigatórias. Esses processos avançaram muito, mas estão limitados à cobertura obrigatória. A ANS, como órgão regulador do setor, não pode apoiar uma solicitação não obrigatória. Pode isto sim, coloca-la em discussão quando da revisão do Rol de Procedimentos Obrigatórios. Mesmo quando claramente identificados como não obrigatória boa parte dessas demandas é atendida pelo Judiciário.

No âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) os gastos com a judicialização são, assustadoramente, crescentes e entraram definitivamente na agenda dos gestores, inclusive nos municípios, lembrando que no setor público não há instâncias prévias e todos os casos acabam encaminhados ao Judiciário.

É importante que o município tenha uma visão muito clara das demandas, pois aquelas cobertas pelo SUS, obrigatórias portanto, sinalizam para falhas da rede municipal ou das esferas estadual e federal, que podem e devem ser corrigidas, para atender aos direitos dos cidadãos e para sinalizar claramente ao Judiciário que os gestores estão cumprindo com as coberturas garantidas pelo SUS, inclusive para reforçar a legitimidade do gestor nos debates que envolvem as demandas não cobertas pelo sistema.

A busca pelos atendimentos cobertos pelo SUS é um direito mais que legítimo das pessoas e a estrutura do Judiciário cumpre seu papel ao exigir do poder público o seu cumprimento. Porém, mesmo aqui, ocorrem distorções que precisam ser esclarecidas ao Judiciário, previamente sempre que possível, ou nos processos. Fiquemos com o exemplo dos medicamentos. A politica de fornecimento de medicamentos do SUS é fortemente calcada nos medicamentos genéricos. Exceto quando inexistentes o SUS adquire medicamentos genéricos que são disponibilizados em sua rede. São medicamentos de eficácia comprovada, devidamente aprovados e em uso. Muitas vezes há demandas judiciais pelo medicamento de referência, de marca, que são duplamente mais caros, pois já são mais caros em condições normais de comparação e ficam ainda mais caros quando os gestores têm que adquiri-los emergencialmente e em pequenas quantidades para atender uma ordem judicial.

É importante esclarecer ao Judiciário que a adoção de qualquer medicamente obedece a protocolos clínicos estabelecidos e reconhecidos que buscam garantir a sua eficácia e a segurança dos pacientes. Exceções podem existir, a critério médico, porém devem ser tecnicamente justificadas ou impossibilitam qualquer planejamento do sistema. Isso vale para o conjunto das coberturas obrigatórias do SUS.

Veja que não estamos falando de fraudes que são caso de polícia e não de políticas de saúde.

As demandas não cobertas pelo SUS suscitam um debate diferente, bem mais amplo e fragmentado até porque também se dividem em dois grandes grupos: as que se referem a medicamentos, insumos, terapias e procedimento médico-hospitalares já aprovados e reconhecidos tecnicamente no Brasil embora fora da cobertura obrigatória e há as que nem sequer se referem a insumos e práticas aprovadas e reconhecidas no país ou em qualquer lugar em alguns casos. Nos dois casos exigem maior organização das bases técnicas disponíveis e de maior interlocução com o Judiciário, Ministério Público e Defensoria Pública e a sociedade.

É importante lembrar que por mais que os casos individuais nos sensibilizem, devemos encontrar formas alternativas de atende-los, pois não há sistema de saúde no mundo que não estabeleça um rol de procedimentos obrigatórios como limite de sua capacidade de atendimento sustentável e que consiga sobreviver sem que que seus protocolos de atendimento sejam respeitados. A palavra chave aqui é equidade.

*Januario Montone é ex-secretário de Saúde Pública (2007-2012) e de Gestão (2005-2007) da Prefeitura de São Paulo. Atualmente, é sócio-diretor do Monitor Saúde, parceiro técnico do Programa Juntos, onde realiza trabalhos como em Juiz de Fora (MG), que busca minimizar impactos de judicialização da saúde. Clique aqui e saiba mais.

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